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Bairro Solar - Entrevista com Rolf Disch

Conhecido em todo o mundo por projetar um condomínio totalmente baseado em energia solar, o arquiteto alemão Rolf Disch conta como transforma casas e edifícios em fontes de energia sustentável

Produzir mais energia que o necessário. A ideia parece absur-da quando a ordem mundial é preservar os recursos naturais. Mas é exatamente esse o conceito desenvolvido pelo arquiteto alemão Rolf Disch para projetar edifícios sustentáveis a partir do aproveitamento de energia solar. Batizado de Plus Energy, o sistema permite que as construções produzam mais energia do que consomem e ainda vendam o excedente.

Com os primeiros projetos realizados em Friburgo, sua cidade natal, Disch vem expandindo suas ideias para ou-tras localidades, sempre levando em consideração o princípio de que o sol é uma fonte de energia não poluente, inesgotável e gratuita. A residência particular Heliotrope, projetada por ele em 1994, foi considerada a primeira casa no mundo a gerar mais energia do que gasta. A construção parece ter saído de um filme de ficção científica: uma imensa estrutura circular metalizada que gira em torno de um eixo para acompanhar a trajetória do sol.

O arquiteto se tornou mundialmente conhecido pelo pro-jeto do condomínio Schlierberg Solar, também em Friburgo. Com 11 mil metros quadrados de área, o complexo abriga 59 casas e um edifício de uso misto (comercial e residencial), batizado de Solar Ship (Navio Solar). As residências geram quatro vezes mais energia do que necessitam. Calcula-se que a economia anual de energia do condomínio seja o equivalente a 500 toneladas de CO2. Repleto de casas geminadas, com telhados cobertos por painéis fotovoltaicos e cores alegres pensadas pelo designer Erich Wiesner, de Berlim, o projeto foi pre-miado internacionalmente. Áreas verdes, acessibilidade, isolamento a vácuo, uso de madeira ecológica e sistema de captação de água da chuva são outras características que revelam a eficiência do empreendimento.

Atualmente, ele trabalha na instalação de mais um condomínio Plus Energy, na região suíça da Basileia.

O sistema prevê ainda a gestão do financiamento dos imóveis, a administração dos prédios e até a circulação viária no bairro.

Seu interesse por energia solar é antigo. Na década de 1980, ele construiu barcos e um carro que usavam esse recurso. Em 1987, atravessou a Austrália com seu automóvel no Desafio Solar Mundial.

A seguir, acompanhe a entrevista exclusiva concedida por Rolf Disch à Docol Magazine.

Docol Magazine A produção e o uso de energias renováveis são grandes desafios do século 21. Quais são os principais benefícios da energia solar e como a arquitetura pode contribuir para ampliar seu uso?

Rolf Disch A energia solar tem muitas vantagens ecológi-cas, econômicas e sociais. Transformar a radiação solar em calor ou em eletricidade não produz CO2. Não é preciso furar o solo ou cavar uma mina para obter energia. O sol é uma fonte de energia primária gratuita, ele não vai mandar a conta no final do mês. E o preço não sobe. O único investimento é em tecnologia e, uma vez que este é amortizado, a manutenção não demanda grandes recursos. Isso faz com que o valor final da energia solar seja incomparavelmente menor. O custo da energia fotovoltaica deve cair 50% nos próximos anos. Em países onde o sistema já está mais disseminado, os custos dela são mais baixos. A ideia pode ser aplicada mesmo em países onde os preços da tecnologia convencional não são muito exorbitantes por causa dos subsídios, como é o caso do Brasil.

DM Mas, nesse processo, é preciso enfrentar muitos inte-resses, que nem sempre visam o bem-estar da coletividade. Como superar esse desafio?

Disch O sol brilha em quase todos os lugares. Além de ser uma fonte abundante, a energia solar pode ajudar a criar uma estrutura de fornecimento descentralizada. Com seu uso, podemos acabar com um sistema monopolista, em que poucas empresas dominam o mercado. Os proprietários da energia serão os próprios donos das casas, grupos de cidadãos que podem intervir para criar um mercado mais democrático e diversificado.

DM Isso já vem acontecendo nos países desenvolvidos?

Disch Em países altamente desenvolvidos já se consome muito mais energia na construção e no uso dos edifícios do que na indústria ou no tráfego. Isso é um grande problema? Não, é uma grande oportunidade, porque sabemos como reduzir o consumo de edifícios em 80% de formas economicamente viáveis. A eficiência energética deve ser prioridade nesse sentido. Só depois de reduzir o consumo, é possível pensar em como suprir a demanda restante a partir de energias renováveis. Uma residência é capaz de gerar mais energia do que consome e compartilhar o excedente com terceiros, entre os quais a própria rede pública. São soluções possíveis. Por isso, os arquitetos têm grande responsabilidade na luta contra as mudanças climáticas.

DM A Alemanha é um exemplo mundial de consumo cons-ciente de energia, com projetos públicos de incentivo ao uso de energia solar e eólica e leis que proíbem o uso de energianuclear e a queima de carvão. Que ações o senhor destacaria em seu país e qual o impacto delas no seu trabalho?

Disch Acabar com o uso de energia nuclear foi uma decisão his-tórica. Criar um sistema nacional de tarifas, de modo que as ener-gias renováveis possam ser vendidas à rede, foi outra. Na verdade, envolveu um conjunto de políticas semelhantes às criadas na Espanha, o que tem ajudado a estabelecer um mercado mundial de energia solar. Em poucos anos, a participação de energia renovável no uso total na Alemanha pulou de apenas 1% para 27%.

“O sol é uma fonte de energia primária gratuita, ele não vai mandar a conta no final do mês. E o preço não sobe. O único investimento é em tecnologia”

Há várias outras regulamentações importantes, como normas relacionadas à eficiência energética nos edifícios e empréstimos com taxas de juros reduzidas para renovação no sistema de energia de residências. Com todos esses incentivos, começamos a construir casas mais ecológicas. O sistema Plus Energy não teria sido possível sem essas políticas. No entanto, muitas coisas ainda precisam ser feitas. Temos de saltar de 27% para 100% de uso de energia renovável.

DM E como ficam os interesses financeiros das empresas alemãs que geram energia da forma convencional?

Disch Elas perderam 27% de seus negócios, mas têm bastante poder político. De fato, o Estado possui muitas ações dessas empresas. Então, como elas começaram a lutar por seus interesses, o governo atual está desacelerando o processo de transição para proteger seus negócios. Isso tem afetado profundamente nosso trabalho, gerando certa insegurança no planejamento, pois não sabíamos o que esperar depois da redução nas tarifas. De qualquer forma, os projetos de energia renovável não são públicos. O Estado precisa criar um quadro jurídico para suportar as mudanças, mas não podemos esperar que o governo faça os projetos. As empresas e os cidadãos podem fazêlos.

DM O senhor trabalha com energia solar há 40 anos. Quais foram os principais desafios no início?

Disch Comecei com projetos sociais, como centros de juventu-de e casas para idosos. A arquitetura solar veio um pouco mais tarde. Havia planos para construir uma central nuclear em nossa região. Cidadãos, agricultores, estudantes, todos protestaram contra ela. Foi a primeira estação de energia nuclear a ter suaconstrução impedida pelos cidadãos. Durante essa luta, que durou mais de uma década, nós também começamos a pensar em alternativas. Naquele tempo, a energia fotovoltaica passou a se tornar cada vez mais disponível. Qualquer ideia pioneira, em qualquer campo, passa por fases similares. Nós também passamos. Primeiro, as pessoas riram da gente. Foi muito difícil, por exemplo, encontrar financiamento para a primeira casa Plus Energy, a Heliotrope, de 1994. Poucos anos depois, nenhum banco ou companhia de desenvolvimento queria se envolver no primeiro projeto de condomínio. Então, fundamos nossa própria empresa para realizálo e buscamos o dinheiro no mercado privado de capitais. Provamos que todos os céticos estavam errados. Tudo funcionou perfeitamente bem, tanto a parte técnica quanto a econômica. Depois, entramos na fase seguinte, aquela em que as pessoas começam a invejar os pioneiros, e até mesmo a combatêlos. Afinal, todas as grandes inovações ameaçam a forma tradicional de fazer as coisas. E, por fim, as pessoas passam a copiar os pioneiros, alegando autoria das ideias. Estamos nessa fase agora. O principal desafio é não ouvir quem encontra um milhão de razões para nada ser feito.

Minha experiência é: se você tem um projeto inspirador, sem falsos compromissos, com certeza, vai atrair as pessoas certas e o dinheiro de que precisa.

DM O conceito de edifícios que geram mais energia do que gastam é o mais importante de seu trabalho? Qual é a vantagem de gerar mais energia que o necessário?

Disch Em 2010, a União Europeia estabeleceu uma diretiva para o desempenho energético dos edifícios, determinando que todas as novas construções devem ser eficientes e gerar energia baseadas em fontes renováveis a partir de 2020. Assim, nosso trabalho pioneiro já se tornou um padrão. Por que queremos gerar um excedente? Nós não somos Robinson Crusoé, não vivemos isolados. A maioria das pessoas vive em cidades, com toda a infraestrutura e grandes redes. Nós conectamos nossas casas à rede elétrica e, se possível, também podemos contribuir com as redes centrais. Na dimensão de um bairro, de uma cidade, existem soluções muito mais eficientes do que no contexto de uma única casa.

O pico de produção de eletricidade a partir de nossos telhados fotovoltaicos é ao meio dia, horário em que a maioria das pessoas não está em casa. Mas, em outras partes da cidade, há muita gente trabalhando e, portanto, uma enorme demanda. Por isso, faz muito sentido compartilhar. Quanto mais eletricidade limpa vendemos e compartilhamos, mais eletricidade suja será expulsa da rede.

DM A economia e o reaproveitamento da água também são questões importantes nos seus projetos?

Disch Temos feito projetos considerando o uso de água da chu-va e a reciclagem de água cinza [água residual não industrial], de modo que limpamos a água residual biologicamente nas ins-talações dos edifícios para reutilizála. Sempre tentamos deixar a água da chuva escoar longe, para depois trazêla de volta aos ciclos naturais, em vez de conduzila ao esgoto. Tentamos ainda selar o mínimo de terra com concreto ou asfalto, para que a água possa penetrar e evaporar. Outra solução importante que temos adotado é projetar banheiros com sistemas econômicos de torneiras e válvulas de descarga.

DM Depois do sucesso do condomínio de Friburgo, o seu escritório está implementando o segundo projeto coletivo, na Basileia, Suíça. Quais são as contribuições da primeira experiência? E o que há de novo?

Disch Nós aprendemos muito sobre como construir edifícios de forma sustentável e projetá-los de uma maneira economicamente viável. Estamos transferindo quase todo esse conhecimento, mas estamos otimizando o conceito, adaptando o para novos desafios e tecnologias. Agora, em vez de vender o máximo de energia solar, vamos tentar consumi-la no próprio condomínio. Ela será usada, por exemplo, para aquecer a água. E vamos reforçar o conceito sustentável do tráfego, reduzindo ainda mais o número de veículos de propriedade privada. Teremos bicicletas e carros coletivos, e vamos usar energia solar para recarregar as baterias desses veículos. Baseados no mesmo sistema, estamos trabalhando em um projeto em Berlim e na primeira casa Plus Energy na França. No entanto, o maior desafio seria fazer algo dessa natureza em países emergentes, como o Brasil. Já estamos negociando projetos no México e na Nigéria.

“Outra solução importante que temos adotado é projetar banheiros com sistemas econômicos de torneiras e válvulas de descarga”

DM O senhor é otimista quanto a uma economia sustentável no futuro? E o que pensa sobre o Brasil, onde faltam políticas públicas voltadas à preservação dos recursos naturais?

Disch Em termos de energia, estou ligeiramente otimista, por razões econômicas simples: a energia convencional, em breve, vai se tornar extremamente cara, enquanto as tecnologias para energias renováveis serão mais baratas. O crescimento econômico em países como o Brasil só será possível com a conquista da eficiência energética a partir de fontes renováveis. Isso não vai acontecer em um ou dois anos, mas será simplesmente inevitável no médio prazo.



Publicado em 13 de junho de 2016 / Revista Docol


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